Crítica | O Estranho que nós amamos e o feminino na sociedade

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Sofia Coppola já se mostrou uma diretora de grande qualidade em inúmeros trabalhos como, “As virgens suicidas”(1999), “Maria Antonieta”(2006), e “Bling Ring: A gangue de Hollywood”(2013), contudo, é na escolha ousada de desenvolver um remake do clássico O estranho que nós amamos (1971), dirigido inicialmente por Don Siegel, que o seu trabalho alcançou o ápice, demonstrando maturidade artística, sensibilidade, e acima de tudo, a incrível capacidade de se apresentar original ainda que em uma releitura.

O Estranho que nós amamos (2017), filme que estreou nos cinemas do Brasil no dia 10 de agosto, se passa em um Estados Unidos vivenciando a Guerra civil no ano de 1864, numa realidade onde o país se percebe fragmentado entre os estados que apoiam a política escravocrata e os que a renegam. Concentrado no epicentro de um período conflituoso, a atmosfera de tensão proporcionada pela guerra é evidenciada em alguns momentos, mas não ocorre nem por um segundo a tentativa de apontar tal contexto como a força principal desenvolvedora da narrativa, visto que o desenrolar do enredo se delimita em um espaço muito contido, especificamente num internato para mulheres na Virgínia, região sul americana. Veja o trailer abaixo:

Antes de tudo, se faz necessário apontar que toda crítica é fruto da análise de quem a escreve, associada a um background adquirido através do contato com concepções e ideias por trás da narrativa, mais a sensibilidade artística, e que enquanto humano passível de erros, cabe ao crítico também reconhecer a percepção do outro, visto que não existe uma realidade absoluta. É preciso pontuar também que a sensibilidade aplicada para essa crítica que aqui se destrincha, advém de um indivíduo que se percebe e que é percebido enquanto homem, e que a partir de tal axioma, se propõe a indagar, concluir e também a se colocar numa posição de empatia para trabalhar com eficácia na temática da obra, estando sempre aberto a outros ângulos e pontos de vista…Dito isso, vamos lá:

Para tratar sobre a complexidade por trás desse trabalho, é preciso reconhecer primeiramente que este não é um filme de obviedades, onde a mensagem é cuspida na cara do telespectador, mas sim de uma construção minuciosa de detalhes e significâncias, que se evidenciam ao longo do mesmo, utilizando de conceitos muito sutis para introduzir uma análise contundente da sociedade, da mulher enquanto indivíduo social e da estruturação da sexualidade feminina.

Logo no início de O Estranho que nós amamos, a personagem John McBurney, interpretado por Colin Farrell, é encontrado ferido em um bosque por uma das meninas que mora no internato, e é por ela levado até o mesmo, introduzindo-o pela primeira vez para as outras personagens. Para perceber a importância desse momento, é preciso pontuar que as garotas estavam isoladas numa mansão no bosque durante um conflito de proporções gigantescas, e que nada se faria adverso aquela rotina até o aparecimento do Cabo Mcburney, que para muito além de se colocar apenas como figura de quebra da linearidade, também sementa características bem pontuais, ao servir como introdução de um elemento extra que se divergia também pelo seu gênero, pelo seu posicionamento político e pelo estado de fragilidade em que ele se encontrava, com a perna fraturada.

A partir do contato primário que se deu, uma série de coisas começaram a se evidenciar de um jeito até então nunca visto por aquelas mulheres, principalmente no que diz respeito a forma indireta e direta com a qual a simples presença daquele homem, interferiu no comportamento, percepção de mundo, e a forma de lidar delas para com as outras que dividiam o espaço. As reações se projetaram de modos diversos entre cada uma delas que ali se encontrava, gerando desde uma tensão sexual, como por exemplo na relação dele com as personagens Edwina Dabney e Alicia, interpretadas respectivamente por Kirsten Dunst e Elle Fanning, até uma representação de uma ameaça ao grupo, decorrente de seu posicionamento político, como foi concebido por Mrs Jane, interpretada pela atriz Angourie Rice.
A relevância dessa modificação comportamental delas diante da sua estadia, é gigantesca quando se mostra de forma evidenciada que a casa era regida por uma conjuntura hierárquica, na qual todas elas eram subordinadas a figura maternal impositora da Martha Farnsworth, personagem de Nicole Kidman, que diga-se de passagem se mostra impecável na atuação, e que no momento em que um indivíduo adverso ao tudo surge, todo o contexto passa a ser questionado pelas mulheres.
Tais diferentes compreensões de um mesmo homem, servem para concretizar uma gama de reações que a figura masculina pode vir a provocar na psiquê de cada uma delas, variando desde o despertar amoroso que funciona ora como simbologia de liberdade (vide sua relação com Edwina), ora como emancipação do espectro juvenil (como se deu no caso da Alicia), passando pela compreensão de uma figura de força e de apego, como foi notado na conotação de amizade que surge entre o mesmo e Mrs Amy (figura interpretada por Oona Laurence), até a percepção de uma força opositora ao todo, que é a forma como o mesmo foi entendido tanto pela Martha Farnswoth, que optava por confronta-lo utilizando de sua presença e valor hierárquico, quanto pela Mrs Jane, que se abstinha do contato direto a ele por entender a sua existência naquele local como algo a ser ponderado.

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A narrativa do filme se desenrola na existência de uma tensão que cambaleia entre diferentes possibilidades de compreensão, mas que termina por focar numa atmosfera sexual, uma vez que é justamente sobre essa ótica que as coisas começam a tomar um rumo diferenciado, e o filme passa a propor ao telespectador uma viagem ainda mais minuciosa e algumas vezes, deveras complicada de se perceber. Tal ótica se sobrepõe a partir do ponto da trama em que duas das personagens passam a desenvolver um interesse ávido pelo Cabo McBurney, e o mesmo, ainda num período de recuperação da perna machucada, se aventura nas possibilidades oferecidas por ambas as personagens, sem explicitar de forma evidente uma predileção por nenhuma delas.

Ao longo do desenvolvimento da película, paira inicialmente uma ideia que acaba por se confirmar em um momento posterior, de que não era mais do interesse do soldado a volta para a batalha ou para o lar, visto que sua personalidade é demonstrativa de um ímpeto de resguardo e de uma busca, ainda que velada, por um ambiente com maior tranquilidade e sem as atribulações que lhe eram conferidas no contexto bélico.
A instauração desse estado incomum na casa, é de suma importância para pontuar também que enquanto para ele, o local representava o encontro de algo que o mesmo estava de fato procurando (a tranquilidade, a segurança e outros atributos que fomentam uma noção de porto seguro), para elas, aquele ambiente começou a adquirir e a gerar contendas constantes e um clima de desagrado que ainda que não fosse tão consciente a priori, acabou sendo comprovado em outras cenas.

A atmosfera do filme que foi conferida pela fotografia e pela montagem, implementaram uma paleta de cores um tanto quanto sardônica, o que serviu para atribuir uma ideia de conforto, tranquilidade e ainda serviu como simbologia de sofisticação, o que apontava unilateralmente para a compreensão de algo advindo do feminino, sementando a preponderância delas sobre ele naquele ambiente, e sendo de extrema importância para evidenciar a desigualdade de forças.

A obra atinge o que seria considerado o seu ponto inicial do clímax no momento em que é instaurada uma situação de conflito entre as personagens com as quais o Cabo McBurney possuía uma dada tensão sexual, e num ato acidental, uma delas acaba por joga-lo da escada. Ainda que compreendida como acidente, a atitude termina por gerar uma série de atribulações posterior a isso, principalmente visto que depois de ser derrubado, o personagem piora completamente a fratura na perna e a chefe do internato, Martha Farnsworth conclui que a única forma de evitar a morte do mesmo é com a amputação de sua perna. A partir desse ponto, a trama toma rumos completamente inesperados.

No momento em que o personagem volta a consciência e percebe que teve sua perna amputada, o discurso oral e corporal dele ganha um caráter absurdamente esmeril, e nesse instante se torna límpida a ideia de que o mesmo compreende e dimensiona a sua força e relevância enquanto homem, e que numa realidade onde todas as figuras que os circundam são femininas, é dele a prevalência da fala. É possível perceber que ainda que sendo um homem aleijado, dependente de muletas para locomoção, e estando em menor número, a simples compreensão da sua masculinidade como algo que se sobrepõe ao feminino, é o suficiente para instaura-lo como pessoa dominante, submetendo as mulheres da casa a um estado de ameaça, e gerando nelas uma sensação de desconforto que em outrora já havia sido representada, mas que somente nesse ponto serve como demarcação perfeita entre o que é aceitável e o que é tirano.
É no cúmulo da imposição que nasce nas personagens femininas a vontade de oposição ao estado que se decorre, e é a partir dessa consciência que o equilíbrio de poder começa a tomar rumos diferentes.

Em estado de completa fragilidade, se sentindo inferior diante daquelas mulheres que o circundavam, é que a psiquê de John Mcburney revela a violência que reside no âmago do desenvolvimento do masculino, e é justamente por esse reconhecimento da fragilidade que ele acaba perdendo o controle e se tornando agressivo.
O que é curioso nesse evento é perceber que o gênero feminino, como figura que é constantemente rebaixada socialmente quando equiparada a esfera do masculino, na obra em específico, se delimitou originalmente como a força mais arrebatadora da casa, mas que a chegada dele serviu indiretamente para reduzir essa relevância, e para colocar a ele mesmo como o foco principal, mas que mesmo diante dessa perda de poder tão evidente, em momento algum as mulheres tiveram o surto de agressividade que acometeu o personagem.
A narrativa da montagem do filme e da estruturação que se decorre a partir dessa cena, serve principalmente para dois propósitos:
• Para concretizar a disparidade entre as reações de ambos os gêneros diante de uma situação de ameaça
• Para atrelar a compreensão do feminino de forma mais condensada, corroborando para que o masculino passe a ser enxergado como objeto externo ao resto

É justamente na condensação do feminino que o filme toma o rumo para o final, quando atordoadas pela ameaça eminente, as mulheres se juntam e decidem colocar um fim na situação através de um jeito completamente simbólico de findar a vida do intruso: através da comida.
Quando comecei esta crítica pontuando a existência de detalhes e minúcias quase imperceptíveis, o fiz justamente por entender que não reside nesse trabalho a dimensão do que é trazido de forma expositiva. Ao decidir encerrar o conflito através de um envenenamento, a trama coincide num ato de alta significância dentro da esfera do que é considerado feminino, escolhendo não somente apontar as mulheres como a força que se prolonga em destaque no final, mas optando por ceifar a trajetória daquilo que é entendido como masculino a partir de um golpe incisivo que é dotado de simbologia e resistência.
Dito isso, é conclusivo que Sofia Coppola não só obteve êxito em conservar traços característicos do filme original de 1971, mas que a mesma soube utilizar com excelência todas as ferramentas conferidas a ela pelo trabalho cinematográfico para que também fosse demarcada a sua força enquanto mulher, e a essência desse enredo tão amplo e sensível que é o de O Estranho que nós amamos.

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