As figuras que marcaram a história da humanidade sempre estiveram e estarão presentes na indústria do cinema. A sétima arte tem um relacionamento forte com enredos que contam a biografia de personalidades que fizeram a diferença no meio em que estão inseridos. Dessa vez, através do olhar de Fernando Meirelles, o filme Dois Papas mostra as faces da fé por detrás dos muros da igreja, ao humanizar duas figuras que representam a liderança do catolicismo.
Sinopse Dois Papas:
Buenos Aires, 2012. O cardeal argentino Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) está decidido a pedir sua aposentadoria, devido a divergências sobre a forma como o papa Bento XVI (Anthony Hopkins) tem conduzido a Igreja. Com a passagem já comprada para Roma, ele é surpreendido com o convite do próprio papa para visitá-lo. Ao chegar, eles iniciam uma longa conversa onde debatem não só os rumos do catolicismo, mas também afeições e peculiaridades da personalidade de cada um.
O mundo para quando as portas do Vaticano se fecham para um Conclave. As câmeras captam tudo, transmitindo aos fiéis qualquer notícia sobre a nomeação do novo líder da igreja. É esse o início do filme, mostrando aquilo que todos nós sempre assistimos através da TV: a visão externa sobre a nomeação de um Papa.
Quebrando essa estrutura inicial, a película mostra os detalhes que envolvem a votação para o novo líder católico, desde os ritos religiosos, até a celebre frase dita em latim “Habemus Papam” (que significa Temos Papa) proclamada na Varanda Central da Basílica de São Pedro.
A partir desse ponto, o roteiro adentra as entranhas do Vaticano, colocando o telespectador bem perto dessa figura santificada — o Papa — humanizando-o ao exibir seu cotidiano, seus dilemas e o olhar interno, perante os escândalos que assombram a igreja.
Fugindo de qualquer beatificação dos personagens, a trama nos coloca perto deles, através de diálogos dramáticos e bem-humorados e cenas contemplativas. Quem diria que veríamos um Papa sentar na frente da TV para assistir uma partida de futebol, ou um Papa com tamanha agilidade no piano?
O roteiro assinado por Anthony McCarten (responsável por filmes como O destino de uma Nação e A teoria de tudo) acerta do começo ao fim, ao aproveitar as cenas em que os dois protagonistas estão juntos. Carregado por uma atmosfera serena, tudo é colocado em tela de forma natural: as falhas, arrependimentos e os conflitos de ideais religiosos. Assim como, o peso de guiar bilhões de cristãos no caminho da fé.
Essa é a grande beleza do roteiro, tratar essas figuras grandiosas com espontaneidade, nos aproximando mais de seus conflitos internos. O enredo ainda consegue mostrar a fundo os fatores que diferenciam o atual e o futuro Papa; um contraste bem colocado.
A expressão “nos bastidores do Vaticano” cai como uma luva (ou uma batina) nesse filme. A fotografia utiliza um artificio genial, que é colocar a câmera inquieta atrás de pilares, moitas, cercas, portas e paredes. É como se estivéssemos dentro da cena, escondidos pelos cantos e espiando toda a conversa.
Sir Anthony Hopkins é um veterano da indústria, sempre indo além do excelente. Nesse filme, não seria diferente! Ao dar vida ao Papa Bento XVI, o ator entrega um personagem que convence em todas as suas características, desde o modo de andar, de falar, de parar e pensar. Com um olhar carregado de certezas e incertezas, Hopkins é natural em cena. Ganhando nossa atenção no decorrer da trama, com diálogos que expõem seus receios e temores, o ator nos emociona ao explorar o lado frágil do Papa. E, às vezes, por meio das falas sarcásticas, consegue arrancar gargalhadas do público.
Uma palavra que define muito bem o trabalho do ator Jonathan Pryce é “irreverência”. Nós o conhecemos, primeiramente, como o Cardeal Bergoglio e o roteiro entende que o futuro Papa Francisco I é uma figura com tamanha personalidade e carisma, palavras bem compreendidas pelo ator, que esbanja verdade nas suas cenas. Ele tem muita alma ao encarnar seu personagem, estabelecendo rapidamente uma conexão com o público. Um trabalho muito humano, carregado de simplicidade e verossimilhança. O roteiro também acerta em mostrar os hobbies do Cardeal Bergoglio. Quem poderia imaginá-lo como um bom dançarino de Tango?
Há uma cena muito descontraída, que expõe as dúvidas que o personagem têm sobre os espalhafatosos uniformes dos guardas do Vaticano. Ele diz “sempre achei que esse uniforme fosse desconfortável e quente. Deve ser difícil manter ele limpo. Talvez, alguém lave para você“.
O Cardeal Bergoglio é um religioso com pensamentos revolucionários, perante os dogmas da igreja. Pryce é desafiado, e espetacularmente dá um show de atuação quando seus ideias batem de frente com os pensamentos mais arcaicos que a Igreja possui. Cada frase dita pelo ator é impregnada de muita certeza e calma, acertando no tom do personagem, criando mais empatia.
Não bastando, o ator Juan Minujin (que interpreta a versão mais jovem do Cardeal Bergoglio), mantem o mesmo olhar de Pryce, criando uma igualdade nas interpretações, seja no passado ou no presente.
Fernando Meirelles é um diretor brasileiro com um currículo carregado de personalidade e filmes que marcaram nossa memória cinematográfica. Responsável pelo ambicioso Cidade de Deus, o cineasta comanda Dois Papas com devoção. Mostrando o lado cru de tais figuras, ele consegue usar a tensão nos diálogos, que jamais apelam, despertando indagações sobre a linha que separa o homem social e o homem religioso, ainda mais quando esse homem religioso é o Papa.
Sem medo de apostar nas características comuns de seus protagonistas, Meirelles entende muito bem o que sabemos e o que especulamos sobre a religião, e usa isso a seu favor, quando coloca o atual e o futuro Papa em situações ora triviais, ora de suma importância. Todo o passado do Cardeal Bergoglio, antes de se tornar Papa, é mostrado com muita veracidade, alcançando nossas emoções pelo apreço que o Bergoglio tem com seu país de origem: a Argentina.
Em tempos que a fé é questionada, Dois Papas serve para aproximar os homens de suas crenças, usando as falhas do homem religioso para humanizar o Santo Padre. Um filme que abraça o humor, os dilemas e as histórias de duas figuras que sempre usam os diálogos para confrontar suas ideologias, mas que nunca se desprezam.
É a fé simbolizada pela lente do respeito, dos anseios e dos defeitos, dizendo que por detrás de grandes títulos somos todos perfeitos na nossa imperfeição.
O longa recebeu quatro indicações ao Globo de Ouro; Anthony Hopkins e Jonathan Pryce foram indicados a Melhor ator coadjuvante e Melhor ator em filme de drama, respectivamente. Além da indicação a Melhor filme de Drama.
O filme está disponível no catálogo na Netflix.
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