Clube da Luta e a filosofia de Nietzsche | Cinerama
O Martelo destrói, tal como o sabão explode.
Sim, “CLUBE DA LUTA” – não estou aqui para fazer uma piada enferrujada, aliás, amigxs, na boa, essa, de fato, já deu (recado impopular).
Antes de começarmos, mais um aviso: os conceitos aqui expostos da filosofia de Nietzsche serão respectivamente “niilismo” e Übermensch.
Também cabível dizer que há algumas citações de diálogos do filme, o que pode comprometer para alguns o ritmo da leitura, mas os diálogos estão aí por algum motivo; para exemplificar as explicações.
POIS BEM, POR QUE NIETZSCHE?
Você provavelmente já ouviu/leu algo do tipo “filmes inspirados na filosofia de Nietzsche”. O filósofo em questão é conhecido no meio como o “filósofo do martelo” – isso porque golpes de martelo (sentido figurado) poderiam destruir os fundamentos da civilização ocidental em prol do conceito de “transvaloração dos valores”, isto é, um tipo novo de sistema que não reprima os instintos humanos/animais.
NIILISMO
O conceito de niilismo é algo bem complexo dentro dos estudos filosóficos e não cabe aqui explorar a fundo suas variadas nuances.
Vamos brevemente expor o conceito de “niilismo”, recorrendo a um dicionário filosófico. Segundo o Dicionário Oxford de Filosofia:
“Teoria que se promove o estado em que não se acredita em nada, ou de não se ter comprometimentos objetivos”- essa é a definição mais próxima da que será usada no presente texto.
Para Nietzsche, em linhas gerais, o conceito foi usado para evidenciar a decadência europeia, o colapso dos valores tradicionais, a descrença em um futuro/destino digno para a civilização ocidental e o questionamento da noção de progresso iluminista. Com isso, é negada a crença em valores absolutos no campo da ética, estética e no campo social. Como já apontado acima, o niilismo nietzschiano conduz a novos valores que devem ser afirmativos da vida e para além do bem e do mal, isto é, para além da moral de rebanho.
NIILISMO NO FILME
Bem, o niilismo presente no filme pode ser explicitado em diversas passagens, mas vamos começar aqui com a seguinte frase proferida por Tyler Durden.
“Você só é livre pra fazer qualquer coisa depois que perder tudo”
Nesse sentido, há uma vontade consciente no filme de negação dos valores estabelecidos pela sociedade, bem como o consumo de suas bugigangas, aí também podemos encontrar críticas diretas ao sistema capitalista, já que o filme e livro são produzidos já no capitalismo plenamente desenvolvido. Em um nível ainda mais trágico: a negação do próprio eu, perder-se para encontrar-se.
“Eu deveria estar procurando por um novo apartamento, ou cuidando do seguro, eu deveria estar perturbado pelas merdas que perdi, mas não estava.” – Narrador sobre o incêndio em sua residência.
Segundo o pensador alemão, a sociedade está/estava doente: fomos obrigados a reprimir nossos instintos; eis o estado de mal-estar, no qual, nossas frustrações, raivas e ressentimentos devem ser sublimados, o que pode dar origem à doenças de cunho psicológicos/psiquiátricos (podemos achar isso em Freud também).
O Clube da luta, dessa forma, é a catarse materializada desse homem que na verdade parece louco por um sentido, mas não o sentido determinado pela sociedade e suas tradições.
“O clube da luta se tornou uma razão para cortar o cabelo curto ou aparar as unhas”
Nesse seguimento, há uma vontade de construir algo novo, e, de acordo com a linha argumentativa do romance e do filme: destruir para construir, tal como o conceito de Übermensch presente na obra de Nietzsche. O despir-se de sua identidade experimentada e perseguida pelo narrador interpretado por Edward Norton no filme é uma tentativa de superar o vazio existencial, tal como o Übermensch é a forma de superar o niilismo.
TYLER DURDEN COMO ÜBERMENSCH
Übermensch, traduzindo: é o super-homem, ou o além do home, há discussão acadêmica no que tange à tradução mais adequada, mas aqui iremos usar o “além do homem”.
O Além do homem ultrapassa a fronteira das tradições e dos ditos “bons costumes”, credo, classe, nacionalidade e a própria condição humana determinada pela sociedade, ele mantém uma superioridade em relação às convenções e proibições da vida social.
“Eu vejo aqui os homens mais fortes e inteligentes. Vejo todo esse potencial desperdiçado. Que Droga! Uma geração inteira enchendo tanques de gasolina, servindo mesas, escravos de colarinhos brancos” – Tyler Durden.
Em uma outra fala de Tyler, no momento em que ele conhece o narrador:
“Sabia que se misturar gasolina e suco de laranja, pode fazer Napalm? Você pode construir todo o tipo de explosivo com material caseiro, SE TIVER INTERESSE“.
Isto é, a possibilidade de transvaloração/superação dos valores que sufocam o homem é possível, e isso é mais simples do que se pensa, se você não for mais um cordeiro no rebanho, ou mais um tijolo na parede. A simplicidade da matéria prima para a fabricação de explosivo é análoga à simplicidade de revoltar-se contra o sistema. Assim, o estágio “além do homem” precisaria apenas de um empurrão baseado na negação do eu formado e conformado.
“Eu passei por cima de todo mundo, sim, são marcas de lutas. Sim, estou confortável com isso. Eu estou iluminado.” – Quando o narrador vai embora do trabalho a pedido do seu chefe, descendo as escadas do escritório.
O além do homem é dotado de poder e consciência de sua força, eis o personagem Tyler Durden que consegue reunir todas as características almejadas pelo narrador.
“O libertador que destruiu minha propriedade realinhou minha percepção.” – Quando policial liga contando sobre o incêndio criminoso e Tyler sussurra no ouvido do narrador.
POR FIM
É interessante notar que assim como a obra de Nietzsche foi apropriada certas vezes por movimentos totalitários/fascistas, no filme o projeto “libertário” Mayhem (destruição/caos) leva a elementos totalitários (dissolução do eu no coletivo, a ideia da causa acima das vontades individuais.
“Feito um macaco pronto pra ser mandado pro espaço. Macaco espacial. Pronto pra se sacrificar para uma causa maior” – Tyler para um soldado
Depois de enaltecer os soldados, que num momento anterior do filme eram apenas lutadores, ele inferioriza todos:
“Escutem, seus vermes, vocês não são especiais. Vocês não são uma beleza única. Vocês são a mesma matéria orgânica podre como todo mundo”
Daí em diante, até o final do filme, é perceptível uma certa decadência do projeto inicial do clube da luta expresso pela desconfiança que o narrador demonstra em relação aos feitos de Durden e seu exército, o que o levará à tentativa de desfazer os planos, ao mesmo tempo em que há tomada de consciência de que Durden nada mais é de que seu alter ego, seu Übermensch, que terá que ser sacrificado para que ele retome o controle de suas próprias ações.