“Campo do Medo” e o erro que condena as adaptações de Stephen King

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A mais recente adaptação de uma obra de Stephen King, Campo do Medo, chegou essa semana à Netflix. O longa é baseado no livro homônimo que o autor escreveu em parceria com o filho, Joe Hill. A resposta do público ao lançamento do filme foi predominantemente negativa, com críticas especialmente ao ritmo e ao amadorismo do elenco.

Embora a reação possa ser considerada desproporcional em alguns aspectos, muitas das críticas tecidas pela audiência são válidas. O filme cai em armadilhas que o condenam à mesma mediocridade de tantos outros que se aventuraram no universo do escritor. Estas armadilhas, porém, não são das mais claras, e acabam mistificando o trabalho de King como algo praticamente impossível de ser adaptado ao audiovisual.

Entretanto, uma vez que compreendemos a verdadeira essência da obra de Stephen King, a solução e o caminho para adaptá-la se tornam claros como água.

Em Campo do Medo conhecemos Becky e Cal, irmãos que dirigem por uma estrada deserta do Kansas, cercada apenas por um campo de grama alta. Becky, grávida, passa mal e Cal encosta o carro ao lado do campo. Vindos do matagal, os irmãos ouvem gritos de um garoto que pede socorro. Relutantes, eles adentram o campo em busca do dono da voz desesperada. Não demora até que ambos se percam e comecem a questionar se há mesmo uma saída para o labirinto verde, que parece cada vez mais vivo e consciente da presença dos dois.

A premissa do filme e o seu desenvolvimento lembram muito a estrutura de um conto de terror. Conhecemos personagens que enfrentam ou estão prestes a solucionar um problema pessoal. Antes que a solução seja consumada, porém, estes personagens passam por um desvio drástico na rota de suas vidas e se veem em infernos particulares, cara a cara com seus demônios mais íntimos, que tanto banalizam quanto dão sentido ao que eles antes viviam.

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Seguir esta estrutura, ou pelo menos parte dela, é um tremendo acerto; Campo do Medo preenche sua duração submetendo os personagens a situações que nos engajam pelo absurdo que representam, como faria um episódio de Além da Imaginação, por exemplo. Nas mãos do diretor Vincenzo Natali (que dirigiu Cubo, um filme semelhante) há sempre um mistério interessante a ser desvendado. Esta abordagem torna a experiência bem ritmada, sem “barrigas” que a comprometam. Acontece que tal resultado impõe um custo alto, que o filme se dispôs a pagar.

O terror de Stephen King apresenta uma particularidade que o torna especial, substituindo o entretenimento hedonista pelo intimista. A maioria de suas histórias não é sobre fantasmas, monstros, demônios ou psicopatas, e sim sobre pessoas comuns. Os momentos de terror e horror são ancorados na humanidade cotidiana dos personagens, que conhecemos intimamente. O medo nasce do choque entre a realidade estabelecida ao longo dos livros e o absurdo subsequente.

Por exemplo, a maior parte de O Cemitério, considerada a magnum opus do autor, é sobre a rotina de Louis Creed, como médico, pai e marido. Existem sugestões sobrenaturais através dos capítulos, mas a história é, fundamentalmente, sobre Louis. Conhecemos suas crenças, frustrações e até mesmo a música dos Ramones que ele canta mentalmente. Quando o livro atinge seu clímax, todos os eventos são devastadores, pois Louis foi exposto, humanizado. Seus medos são reais e seu pesadelo palpável, quase insuportável. Louis foi, de certa forma, fragilizado pelo autor. O leitor chega ao epílogo com o queixo no chão e o coração despedaçado.

O preço que Campo do Medo pagou, como quem faz um pacto com o diabo, foi a alma de seus personagens. O longa mantém um ritmo cativante pois pega atalhos que, ao contrário de um conto do gênero, ignoram completamente quem são as pessoas que enfrentam a grama alta. Não existem diálogos construtivos que sirvam para solidificar suas personalidades ou aproximar o público de suas angústias. A futilidade do elemento humano banaliza também o tormento que a história tenta vender, já que tal tormento foi concebido, originalmente, sobre os pilares espontâneos da literatura de King.

Não à toa, as melhores adaptações que estampam “Stephen King” em seus pôsteres são as que se dedicam incondicionalmente aos seus personagens, como O Iluminado, Conta Comigo, À Espera de um Milagre e mais recentemente, It. Estes filmes compreenderam que o âmago da obra original são as pessoas, sendo o terror cataclísmico uma etapa de suas existências. O terror é um produto natural, quase seus destinos, mas não a totalidade de suas vidas e personalidades, pelo menos a princípio. Usando uma analogia do próprio autor: os personagens não podem ser apenas formigas em uma fazenda de vidro.

Um minuto de cada vez, Campo do Medo perdeu a oportunidade de entrar para a lista de melhores adaptações da obra de Stephen King. O filme compreende muitos dos pré-requisitos para tal, como a trilha sonora cheia de personalidade, o simbolismo que parece fruto de outra realidade e o artifício narrativo que guia o enredo. Infelizmente, negligenciar seus personagens é a decisão consciente que, além de denotar uma compreensão limitada acerca da obra original, dilui todo o filme e o priva da personalidade que lhe é de direito por ser fruto de uma das mentes mais brilhantes da história do terror.

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