Crítica | Abril Despedaçado
A legalização da vingança de sangue.
O FILME
Abril Despedaçado, de Walter Salles
Abril 1910 – Na Geografia desértica do sertão brasileiro (Riacho das Almas), uma camisa manchada de sangue balança com o vento. Tonho (Rodrigo Santoro), filho do meio da família Breves, é impelido pelo pai (José Dumont) a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta ancestral entre famílias pela posse da terra. Se cumprir sua missão sua missão, Tonho sabe que a sua vida ficará partida em dois: os 20 anos que ele já viveu, e o pouco tempo que lhe restará para viver. Ele será então perseguido por um membro da família rival, como dita o código de vingança da região. Angustiado pela perspectiva da morte e instigado pelo seu irmão menor, Pacu (Ravi Ramos Lacerda), Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição. É quando dois artistas de um pequeno circo itinerante cruzam o seu caminho e essa realidade passa a ser esquecida pelos irmãos Breves.
O LIVRO
Abril Despedaçado é um filme baseado no romance Prilli i Thyer de Ismail Kadare, adaptado por Karim Aïnouz. O enredo narra a história de uma vingança e do matador encarregado de executá-la. Passa-se na Albânia rural, por volta de 1930, na região do Rrafsh, um maciço de montanhas no Norte do país. Um conjunto de leis não escritas, o Kanuni, rege a vida dos montanheses num vilarejo em Shködra. O Kanuni diz que o sangue que for retirado de um clã, tendo um membro de sua família morto, deveria recobrá-lo, matando um membro da família devedora.
ANÁLISE SOB A LUZ DO KANUNI
A história da película inicia com a narração de Pacu, explicando como funciona o serviço de “tocar os bois”, o cenário mostra que a família Breves sobrevive com dificuldades a seca e a pobreza, através do cultivo da cana de açúcar, da produção e da venda de rapadura.
“A mãe costuma dizer que Deus não manda um fardo maior do que nós pode carregar. Conversa fiada! Às vez ele manda um fardo tão grande que ninguém guenta” – Pacu.
O drama da história começa no jantar da família Breves, o patriarca fala para o filho do meio (Tonho) que a camisa amarelou – a camisa é do irmão mais velho de Tonho que foi morto pela família Rival (Ferreira), seguindo o código de vingança, o código kanuni, que legaliza a vingança de sangue. Rituais são feitos antes e depois do homicídio, a fim de verificar a sua natureza (institucional e técnica). Cada família tem o direito de vingar a morte de seus membros. Vingança de sangue (gjak, gjakmarrje) é exercido pela família da vítima de acordo com o Kanuni. Este último estipula rigorosamente as condições em que vingança de sangue deve obedecer. As disputas de sangue geralmente procedem da seguinte forma: quando um homicídio ocorre, a família da vítima exige retribuição de sangue, os membros masculinos do assassino automaticamente tornam-se alvo de um novo assassinato. Eles se refugiam em suas casas que são consideradas invioláveis sob Kanuni. Durante pelo menos 40 dias em busca de perdão. Se o perdão é concedido ou uma vida é tomada em retaliação, a disputa termina. Caso contrário, o período de isolamento ou sair de casa pode continuar indefinidamente.
O Kanuni é o código dos padrões tradicionais albaneses, é transmitido há milênios oralmente. Diferencia-se de uma tribo para outra, adaptadas para condições históricas e sociais, tem resistido a introdução de diferentes religiões e permitiu a tolerância entre o Islã, Catolicismo e Ortodoxia que os albaneses sempre afirmaram. A antiguidade deste código também nos faz entender as suas peculiaridades. A versão mais completa, a de Lek Dukagjini, foi publicado em 1933, como resultado das pesquisas do Pai Franciscan Gjekov Constantino, natural de Kosovo, que coletou histórias, provérbios, testemunhas na província de Shkodra. Os membros desta comunidade consideram-se todos iguais, eles estão unidos por um conceito religioso de sangue. O direito consuetudinário é, no entanto, não só uma característica da cultura albanesa. A influência romana sobre o direito costumeiro albanês pode ser facilmente observado através da semelhança do papel pater familias, no direito romano. Na ausência de uma estrutura, de um Estado organizado, pater familias é uma espécie de autoridade do Estado, com poderes para punir, adotar e banir membros da família. O conceito de “besa” e “juramento solene” no Kanuni é notavelmente semelhante ao conceito de “stipulatio” e “juramento promissório” da lei canônica (eclesiástico) da Igreja Católica.
“Preste atenção, menino. Teu avô, teus tios, o teu irmão mais velho. Eles tudo morreram por nossa honra e por essa terra. E um dia pode ser tu. Tu é um Breves. Eu também já cumpri minha obrigação. Se não morri foi porque Deus não quis.” – Fala o pai para Pacu.
A aplicação do Kanuni é uma questão de honra, dignidade e fé para os albaneses. Estabelece as regras sobre a qual a cultura se baseia, com foco no conceito de honra. Noel Malcolm resume os princípios básicos desta forma: “ A fundação de tudo isso é o princípio da honra pessoal. A igualdade das pessoas vem a seguir. A partir desses fluxos um terceiro princípio, a liberdade de cada um para agir de acordo com sua própria honra, dentro dos limites da lei, sem estar sujeito a de outro comando e o quarto princípio é a palavra de honra, o Bese (BESA), que cria uma situação de confiança inviolável”.
“Tonho, tu vai com cuidado no amanhecer, e não se esqueça: tua obrigação é só com quem matou o teu irmão. Negócio de homem pra homem, olho por olho.” – Fala o pai para Tonho, que agora vai fazer valer a vendetta.
A chave para o Kanuni é um homem BESA, que é o significado de honra, onde a promessa, ou a palavra BESA vai além da sepultura. BESA exige respeito a promessa, aos amigos, aos hóspedes, é um juramento solene, o que existe de mais sagrado. No direito consuetudinário albanês, esta palavra sere como garantia de que o lesado não vai recorrer à vingança contra um assassino durante um determinado período de tempo. No decurso em que o assassino é protegido por “BESA”, ele e toda a sua família pode se locomover livremente, sem que seja surpreendido pela vingança. BESA é uma coisa sagrada, que significa lealdade, manter a palavra mesmo depois da morte, ou seja, aquele que deu sua palavra, que fez uma promessa, deve cumpri-la, mesmo após a sua morte, essa garantia será gerada pelos seus familiares.
“Pra chegar nos Ferreira, Tonho vai pisar em chão que já foi nosso. Os Ferreira tomaram e nós tomamos dos Ferreira. Agora é deles de novo. Foi assim que começou a briga. O pai disse que é olho por olho. E foi olho de um, por olho de outro… que todo mundo acabou ficando cego. Em terra de cego, quem tem um olho só, todo mundo acha que é doido.” – Pacu.
As mulheres eram isentas da vendetta. É importante compreender que o objetivo deste feudo de sangue não é punição por assassinato, mas a satisfação da própria honra, por ela ter sido poluída. Se a retribuição, fosse o verdadeiro objetivo, ou seja, se fosse apenas o desejo de vingança, então, apenas aqueles que são responsáveis pelo crime, pela desonra, pelo insulto, seriam os potenciais alvos. O que não ocorrre, o Kanuni dá o direito da pessoa ofendida derramar o sangue/matar qualquer membro masculino da família do ofensor original, e o sangue derramado dessa vítima, em seguida, clama a sua própria família para purificação. Exemplo: A ofendeu B, B tem o direito de matar A ou qualquer membro da familía de A que seja do sexo masculino. B conseguindo atingir o seu objetivo, poderá sofrer as mesmas consequências se um familiar de A quiser vingar o seu sangue.
Kanuni, (HAKIMARIA) código familiar que vale há 500 anos, prega que ‘sangue deve ser pago com sangue’. Desde o fim do comunismo em 1991, 9.500 pessoas foram mortas em brigas de famílias (vinganças).
Christian Luli, um rapaz de 17 anos de voz tranquila, passou os últimos dez anos preso dentro da pequena casa de sua família, porque tem medo de que ele seja morto a tiros se sair da porta de casa. Para passar o tempo, ele joga videogame e desenha projetos de casas. Como não pode frequentar a escola, o nível de leitura de Christian é o de um garoto de 12 anos. Uma namorada está fora de cogitação. Ele queria ser arquiteto, mas tem muito medo de que seu futuro seja permanecer trancado em casa, olhando para as mesmas quatro paredes. “Essa é a situação da minha vida. Não conheci nada, além disso, desde que era garoto”, diz Christian, olhando através da janela para um mundo proibido lá fora. “Sonho com a liberdade, com poder ir à escola. Se não tivesse tanto medo, poderia sair de casa. Viver assim é pior do que uma pena de prisão.” Christian Luli (à dir.) em casa com sua família na cidade albanesa de Shkoder em 13 de junho. A desgraça de Christian é ser filho de um pai que matou um homem nessa pobre região no norte da Albânia, onde o antigo ritual de disputas sangrentas entre famílias ainda persiste. De acordo com o Kanun, código de conduta da Albânia transmitido de geração a geração por mais de 500 anos, “sangue deve ser pago com sangue”, sendo a família da uma vítima autorizada a se vingar de um assassinato matando qualquer um dos parentes homens do assassino. A influência do Kanun está em declínio, mas, durante séculos, funcionou como a constituição do país, com regras orientando vários aspectos, como direito de propriedade, matrimônio e assassinato. O Comitê Nacional de Reconciliação, uma organização sem fins lucrativos da Albânia que trabalha para acabar com as rixas familiares, estima que 20 mil pessoas estiveram envolvidas em lutas entre famílias desde que elas ressurgiram, após o colapso do comunismo em 1991, com 9.500 mortos e quase mil crianças impedidas de frequentar a escola por estarem trancadas dentro de casa.
Por tradição, qualquer rapaz jovem o suficiente para manusear um rifle de caça é considerado um alvo para a vingança, deixando vulneráveis 17 homens da família de Christian. A única restrição é que os limites da casa de família não sejam ultrapassados. Mulheres e crianças têm imunidade, apesar de que alguns, como Christian, que amadureceram fisicamente mais cedo, começam seu confinamento enquanto garotos. Membros da família da vítima são geralmente os vingadores, apesar de que algumas famílias terceirizam o assassinato para matadores de aluguel. Lutas sangrentas entre famílias têm dominado outras sociedades, como as vinganças da máfia no sul da Itália e a violência retaliatória entre famílias xiitas e sunitas no Iraque. Mas o fenômeno tem sido particularmente notável na Albânia, um país extremamente pobre que está lutando para adotar as regras da lei após décadas de ditadura stalinista. Enterrados vivos essas lutas familiares quase desapareceram aqui durante o governo de 40 anos de Enver Hoxha, ditador comunista albanês, que declarou a prática ilegal, às vezes enterrando vivo quem não obedecia, nos próprios caixões das vítimas. Mas especialistas jurídicos na Albânia afirmam que as brigas que explodiram novamente após a queda do comunismo levaram a um novo período de anarquia e desrespeito às leis. Quase mil homens envolvidos em lutas familiares fugiram para o exterior, alguns deles solicitando asilo. Mesmo assim, dezenas de pessoas foram perseguidas fora do país e mortas por vingança. Ismet Elezi, professor de direito criminal da Universidade de Tirana, que aconselha o governo e a polícia sobre como enfrentar esse problema, disse que mudanças recentes no código penal da Albânia – incluindo penas de 25 anos na prisão para quem comete homicídio por rixa familiar e penalidades rígidas para aqueles que ameaçam retaliar – ajudaram a diminuir essa prática. Porém, ele observou que alguns ainda acreditam mais no Kanun do que no sistema judiciário, muitas vezes com consequências sociais devastadoras. “A geração mais nova não acredita mais nos códigos de conduta da antiga geração”, ele disse. “Mas rixas familiares ainda causam sofrimento porque os homens presos dentro de suas próprias casas não podem trabalhar, as crianças não podem ir à escola, e famílias inteiras são privadas do mundo exterior.” Alexander Kola, mediador que trabalha para resolver lutas entre famílias, disse que o caso mais comum são disputas em relação a propriedades e terra. Ele observou que as rixas também podem surgir de afrontas aparentemente sem importância. Há um caso recente no qual doze homens foram forçados a ficar trancados em casa depois que um homem da família matou um comerciante que se negou a vender um sorvete ao filho dele. Em outro caso, uma briga explodiu quando uma ovelha pastou na terra de um vizinho, causando uma luta mortal. Sociólogos daqui disseram que as brigas inverteram papéis tradicionais de gêneros na Albânia rural, já que as mulheres se tornaram as principais provedoras da família, enquanto os homens foram forçados a ficar em casa e fazer o trabalho doméstico. A mãe de Christian, Vitoria, de 37 anos, conta que mandou o rapaz ficar dentro de casa quando ele fez sete anos, depois que seu marido e seu irmão mataram um homem na vila por causa de uma briga de bar. Ela disse que seu outro filho, Klingsman, sete anos, frequentava a escola, mas logo seria forçado a se juntar ao irmão na vida de confinamento doméstico. Seu marido e seu cunhado estão na prisão, cumprindo pena de 20 anos por assassinato. “Eu vivo com uma ansiedade e um medo constantes de que Christian seja morto, de que eles estejam à caça do meu filho”, diz Luli, que depende de caridade para se manter, com seus dois meninos e duas meninas. “Espero que alguém da outra família mate alguém da nossa família, assim esse pesadelo finalmente vai acabar.”
Ela conta ter enviado um mediador para tentar obter o perdão por parte da outra família, sem êxito. A família da vítima, Simon Vuka, se recusou a comentar. Mas Kola, que está intermediando o caso, disse que a família não estava preparada para perdoar a rixa porque a vítima tinha dois filhos pequenos que ficaram órfãos de pai. “Muitas famílias de vítimas acham que aprisionar todos os homens da família do assassino em suas próprias casas é uma vingança melhor do que matá-los.” Kola, ex-instrutor de ginástica olímpica que estudou resolução de conflitos na Noruega, afirmou ter tentado reconciliar rixas ao identificar amigos ou parentes influentes da vítima que poderiam implorar à família para perdoar e esquecer. Ele disse que o pedido de perdão geralmente era acompanhado por uma oferta de moedas de ouro ou outros presentes por parte da família do assassino. “Eu digo às famílias das vítimas que o perdão é mais importante que a vingança”, contou. Christian, com uma maturidade maior que sua idade, disse que culpa o pai dele, seu tio e um código de conduta obsoleto por destruir sua vida. Ele acha injusto estar sendo punido pelos crimes cometidos por parentes. Seu único contato com o mundo exterior acontece uma vez por mês, quando um grupo de freiras que fazem trabalho de caridade na comunidade forma um círculo de proteção ao redor dele e o leva em uma viagem de carro de 30 minutos para um centro comunitário próximo. Ele conta que sonha escapar da Albânia, mas sua família é muito pobre para mandá-lo para o exterior. Ele poderia se armar e fugir, mas teme que os riscos sejam mortais. “O Kanun é cheio de regras idiotas”, “É completamente injusto e sem sentido.”
Brigas entre famílias afetaram os jovem, assim como os membros mais velhos da população da Albânia; alguns deles ficam sem cuidados médicos adequados porque não podem sair de suas casas. Sherif Kurtaj, de 62 anos, foi forçado a viver com um tumor nas costas não tratado e um dente podre porque ficou trancado em sua casa durante os últimos oito anos, desde que seus dois filhos mataram um vizinho que ridicularizou os planos dos rapazes de migrar para a Alemanha. Ele contou que precisava de uma cirurgia que salvaria sua vida, mas temia que, se fosse ao hospital, seria morto a balas por vingança. Kurtaj disse que seus dois filhos, cada um condenado a 16 anos de prisão, estão foragidos desde o assassinato. Mesmo que eles se entreguem, lamentou, ainda assim seria obrigado a permanecer trancado em casa. Ele conta que seus amigos tinham muito medo de visitá-lo, preocupados em serem acidentalmente baleados. Kurtaj disse que a rixa o tornou totalmente dependente da esposa. “Sou um homem do Kanun e fui criado para ser o homem da casa. Mas hoje minha mulher é tudo para mim.” Kurtaj poderia apresentar uma queixa, de acordo com as leis do país, contra a família da vítima por tê-lo ameaçado de morte; esse delito implica uma pena de até três anos de prisão. Mas Kurtaj contou ter medo de que isso só traga represálias. “O Kanun tem que ser obedecido”, disse. “O sangue precisa ser vingado.”
Antes das alterações introduzidas pelo regime comunista, na década de 1940, os albaneses eram um povo tribal, que viviam em unidades de família denominadas FIS. Essas FIS possuíam tradições antigas tais como a “VINGANÇA” ou feudos de sangue, que poderiam perdurar por muitas e indefinidas gerações. Para sua proteção, durante esses feudos, as famílias viviam em fortalezas de pedra chamadas de KULAS. O piso térreo das kulas era construído com fendas em vez de janelas enquanto o piso superior possuía janelas que podiam ser fechadas. No período do regime comunista, praticamente não se escutava sobre a “VINGANÇA”, mas após a queda do comunismo esse costume ou tradição retornou, mais especificamente no norte da Albânia. Hoje mais de 3.000 famílias têm os seus homens presos em seus próprios lares. Os homens de qualquer idade são prisioneiros em suas próprias casas, sem direito à escola, assistência médica ou qualquer outra atividade. Apenas o sexo feminino tem liberdade de ir e vir, para exercer qualquer atividade fora do lar.
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Referência:
Malcolm, Noel. “Kosovo Uma Breve História”. New York: New York University Press, 1998.
Teuta Vodo, Universite Libre de Bruxelles. O sistema judicial albanês na frente do direito consuetudinário: dependência caminho e Painel de conjunturas ECPR crítica: Estado pratica Dublin / Irlanda 2010/09/02
Elta ALIMEMA Universita di Padova, Ligji dhe Jeta (Law and Life), o Comitê de Vida de Nationwide Reconciliação