Crítica | A Casa Que Jack Construiu – A devassidão artística de Lars Von Trier

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Sinopse: Jack é um ardiloso assassino em série com problemas de TOC, cujo o objetivo sangrento a cumprir é a promoção contínua de seus assassinatos, enquanto divaga sobre questões ligadas a moral, a arte, e ao seu próprio papel no mundo. 

Que Lars Von Trier é um dos diretores mais questionados e provocativos do cinema atual, não resta dúvidas, e todos aqueles que acompanham de perto sua cinematografia compreendem que cada filme é uma peça única, trabalhada através de uma perspectiva muito perturbadora, quase sempre voltada pra reflexão do desenvolvimento da psiquê humana, e com grande recorrência a temáticas tabus que promovem assombro e angústia em quem arrisca assisti-lo, mas algo permanece na esfera do mistério: Sua capacidade em recorrer a temáticas que já foram trabalhadas, só que de uma forma completamente original, audaciosa, e muitas vezes, prepotente. 

Prepotência é inclusive um adjetivo que na maioria dos diretores soaria como algo ofensivo, que fere o potencial artístico dos mesmos, mas no caso de Lars, a sua relação com a violência gráfica, e a forma que beira uma construção idealizada quase divina da fotografia dos seus filmes e da reflexão de suas problemáticas, invariavelmente alçam-o para um ponto além do padrão, que é intencionalmente abrupto e violento, e que se constrói sobre a compreensão prepotente do mundo e das relações humanas. 

Dito isso, não é surpreendente conceber que o seu mais novo filme, A Casa Que Jack construiu, é um manifesto a violência, a psiquê humana, e ao seu estilo único de construir e promover a narrativa cinematográfica. 

Com interpretação de Matt Dillon, o sádico Jack carrega uma áurea quase cômica, rodeada de um aspecto mais sombrio, produzido pela sua noção deturpada de mundo e de sociedade, o que é permissivo com o desenvolvimento de um personagem que é dubiamente humanizado e desumanizado. Tal pontualidade em sua personalidade é fundamental para o desenrolar da narrativa sem que a mesma caia em um lugar comum, e termine reproduzindo uma versão moderna de Psicopata Americano (2000)

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A narrativa tão original ganha ainda mais solidez uma vez que ela parte da primeira pessoa, isto é, do ponto de vista de Jack, o que gera um efeito muito interessante e já visto em outras obras, incluindo na literatura como no caso de Lolita: A sensação de que ainda que moralmente incorreto e nefasto, o feito efetivado é muito mais passível de contato e proximidade, uma vez que os relatos são conectados diretamente ao próprio personagem e a sua percepção. 

“As antigas catedrais costumam ter obras de arte sublimes, escondidas nos cantos mais escuros para que somente Deus possa ver. O mesmo vale para o assassinato.” Jack 

Além de todo o desenvolvimento narrativo bem evidenciado por Lars, o filme acaba se destacando ainda mais do todo quando a partir do final do terceiro ato começa a trazer a tona um caráter mais lúdico, ligado a uma reflexão filosófica que divaga entre um cinema realista e pontual em oposição a um universo simbolista com recortes literários e históricos incríveis. Nesse ponto, o telespectador já não compreende os rumos tomados pelo filme, mas sente-se absurdamente envolvido pelos takes grandiosos e pelas referências artísticas magnificentes. 

Não fosse pela longa durabilidade, cerca de duas horas e quarenta minutos, a obra seria impecável, mas a decisão de prolongar o primeiro e o segundo ato para edificar a percepção do telespectador diante de Jack e de sua patologia através de cinco incidentes que concluem tal ideia, fazem com que em meados do segundo ato, o filme comece a se tornar massivo, de maneira que não fosse a reviravolta do formato da narrativa e do universo fílmico, o trabalho acabaria sendo exaustivo. 

Ainda assim, não restam dúvidas quanto ao potencial de Lars Von Trier e do seu cinema perturbador. Suas obras são odes a criatividade humana e ao caráter sombrio e dicotômico de nossa espécie, e serão sempre demarcadas como referência em qualidade e em autenticidade. Mais uma vez o diretor se prova inquestionavelmente essencial no cinema e nas artes como um todo. Um ótimo pedido para esse final de semana pós Halloween. 

Veja também: Cinema 3D, está chegando a sua hora de dar tchau

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